As pessoas que me honram com as suas presenças neste blog peço licença para abrir este espaço para um canti
nho do Rio de janeiro que tem estreita ligação com Portugal, a Lapa com o seu aqueduto.
Esta abertura é em virtude de uma crônica que li sobre a Lapa, premiada em 1º lugar no II CONCURSO LITERÁRIO LERUERJ, cujo lançamento aconteceu ontem no Departamento de Letras daquela Universidade e o seu autor me autorizou a publicar.
Abaixo tem o texto da publicação, espero que todos se interessem e gostem, história singela de um jovem que conseguiu transpor a barreira existente entre um longinquo suburbio do Rio e a inebriante Lapa de ontem, de hoje e de sempre...
Deliciem-se com este passeio pelo underground do Rio de janeiro das décadas de 80/90
VOCÊ SABE O QUE É A LAPA, MEU FILHO???
*Deusdemóstenes
de Antuérpia
Foi por volta de 1990, se não me
falha a memória, que os amigos mais velhos da vizinhança me avisaram do show do
Sepultura no Circo Voador. A banda estava retornando da sua primeira turnê
europeia/americana, divulgando o álbum Beneath The Remains. Um sonho a ser
realizado para um jovem metalhead
campo-grandense de quinze anos incompletos. Só que tamanha aventura esbarrava
num obstáculo aparentemente intransponível: a permissão familiar. Súplicas à
mãe esgotadas, esta resolveu assumir sua porção Pôncio Pilatus e lavou as mãos:
–
Liga para o seu pai. Ele é quem resolve.
Meu pai, falando do escritório, com
voz inflexível e algo colérica, lança a questão tonitruante:
–
VOCÊ SABE O QUE É A LAPA, MEU FILHO???
Respondi, recalcitrante e intimidado
por dentro, mas tentando aparentar a voz firme e decidida para um adolescente
que mal havia transposto os limites do próprio bairro de origem, não a pergunta
de meu pai, mas uma justificativa desesperada, talvez a última cartada de que
dispunha, a última bala na agulha:
–
Mas eu vou com a galera daqui da rua, pai, são todos maiores e tão acostumados.
–
ENTÃO VOCÊ ESTÁ POR SUA PRÓPRIA CONTA!!! –
Sentenciou meu pai, resignando-se a contragosto.
E lá fomos nós, encarando uma
composição oriunda de Santa Cruz com destino à gare Dom Pedro II, para dali
empreender uma caminhada de aproximadamente vinte minutos rumo aos Arcos da
Lapa (estratégia de economia de alguns trocados para a bebida). Tudo era
novidade, desde as figuras excêntricas vestindo roupas pretas, com os rostos
pintados e cruzes invertidas penduradas no pescoço, na calçada do boteco
Arco-íris, até elementos da plateia se dependurando do mezanino ao palco nas
estruturas de vigas e vergalhões que sustentavam a lona do lendário espaço
cultural, e se lançando ao público em desenfreado stage diving, por vezes levando-me a confundir quem era da banda
com quem era da plateia. Nada mal para uma primeira vez, meu début lapeano, do qual retornei para
casa já pela manhã, sujo, suado e bêbado.
Dali por diante, minha vivência no underground carioca se intensificou,
dividindo-me entre o point Sorvetão, um “pé-imundo” (porque chamar aquilo de
pé-sujo seria demasiado indulgente) situado no que hoje é conhecido como o
Baixo-Méier, Caverna II aos domingos na Lauro Müller, ao lado do shopping Rio
Sul em Botafogo, a então novidade Garage Art Cult na Rua Ceará, Praça da
Bandeira, e o já consagrado Circo Voador, com algumas incursões extrarrotineiras
aqui e ali, como o Largo da Igreja de Santa Cecília em Bangu ou o hoje finado
Barroquinho em Icaraí, Niterói, que cedeu espaço a um “bar de playboy” na
atualidade. Vez por outra éramos agraciados com grandes shows de ícones da
música pesada no Maracanãzinho, a exemplo de Venom, Exciter, Motörhead,
Metallica e Iron Maiden, e o Black Sabbath no Canecão, ou grandes festivais
como o Rock in Rio 2 no Maracanã e Hollywood Rock na Praça da Apoteose, cujas
bandas do cast tiveram a
magnanimidade de abençoar seus fãs tupiniquins com memoráveis turnês naqueles
difíceis tempos para quem curtia Heavy Metal no Brasil.
Comprar discos também era uma
via-crúcis, especialmente para um morador da Zona Oeste, em tempos nos quais o
transporte coletivo era ainda mais precário do que hoje em dia, se é que tal
feito seja possível. Era uma verdadeira Odisseia atravessar a cidade,
transitando por lojas como Point Rock em Copacabana, Hard’n’Heavy no Flamengo,
Subsom e Headbanger na Tijuca, Sempre Música no Catete, e os sebos de discos na
Uruguaiana – que, infelizmente, hoje
não existem mais –, em busca das últimas novidades
lançadas em vinil, que conhecíamos por meio do programa Guitarras, da extinta
rádio Fluminense FM, “A Maldita”. Bons e sofridos tempos...
A minha relação com a Lapa, porém,
nunca se desfez. E não era essa Lapa dos gringos e das boates e bares
“arrumadinhos” que hoje aparece no caderno de entretenimento do RJTV. Era a
Lapa bandida, marginal, soturna, a Lapa dos assaltantes, travestis, prostitutas
e traficantes – que já não trazia o glamour das primeiras décadas do século
XX de personagens lendários como Madame Satã –,
a Lapa dos cabarés, dos malandros, boêmios, capoeiras e compositores. Era a
Lapa na qual me deparei, ao procurar por um botequim com cerveja mais barata na
Mem de Sá a fim de me aquecer para um show da Dorsal Atlântica e Ratos de Porão
no Circo, com uma cena inusitada: em frente a uma birosca de ambiente nada
familiar, uma joaninha da PM, e, na porta, um soldado apontando uma macaquinha
para o teto do dito estabelecimento, de cujo forro antigo de lambri pendia uma
perna. Sim, uma PERNA humana! Ao perguntar ao atendente do balcão o que se
passava, este me informou que um assaltante que acabara de praticar roubo nas
imediações, sendo perseguido pela polícia, correu para dentro do bar, ao que o
atendente mostrou seu tresoitão na cintura e lhe disse que “não pulasse ali
senão levaria bala”, obrigando o azarado meliante em fuga a se esconder dentro
do depósito no sótão do estabelecimento, onde, atrapalhado, acabou por fazer um
buraco no forro com o peso do próprio corpo, tornando-se presa fácil para seus
perseguidores. Nada mais típico daquela Lapa.
Os anos se passaram, a Lapa bandida
foi revitalizada e transmutou-se em Lapa turística e de lazer, cultura e
entretenimento, e eu continuei minhas andanças por aquele bairro tão presente
em minha vida. Mesmo me mudando para Copacabana, já nos anos 2000, aquele lugar
continuou a ser o meu quintal, agora já bem mais próximo do que antes. E, como
se não bastasse a recente proximidade geográfica, ainda arrumei uma bela
namorada capixaba que viveu boa parte da vida em Niterói e, ao me conhecer,
mudou-se para o Bairro de Fátima. Não satisfeita, mudou-se para ainda mais
perto dos Arcos, na Mem de Sá, onde passo os momentos mais loucos e divertidos
dos finais de semana. Companhia melhor, impossível.
Hoje, se perguntado novamente por
meu pai, seguramente eu poderia responder com firmeza e decisão à pergunta não
respondida de vinte e quatro anos atrás:
–
Sim,
pai. HOJE eu sei o que é a Lapa!
*
Deusdemóstenes de Antuérpia é carioca, rubro-negro, nascido em Campo Grande
e morador de Copacabana. Apreciador de Heavy Metal e cerveja gelada, boêmio,
músico, professor e historiador, mas também ama literatura brasileira, russa,
inglesa e de língua espanhola. Arrisca-se a escrever de vez em quando, desde
que o pano de fundo seja sua amada cidade (embora não se considere lá muito
talentoso).